Almar o corpo
Em tempos midiáticos (e ainda do patriarcado), não somos ensinadas a experimentar nosso corpo como nossa casa, mas como imagem — e aqui uso o termo mais próximo a sua origem etimológica, imago, a “máscara mortuária” que guardava o molde do morto; ou seja, um corpo enquanto imagem não é visto como manifestação de algo vivo e dinâmico, cheio de emoções, afetos e histórias. O corpo se tornou coisa, imagem inerte, e foi desalmado. Precisamos almar o corpo se queremos amar o corpo.
E o que seria almar o corpo? Uso alma aqui no sentido psicológico e metafórico, e não no metafísico, sendo que almar o corpo significa enxergar suas profundidades, enxergar através dele como uma perspectiva, e não como uma substância. O corpo enquanto aquilo que não é coisa e não pode ser coisificado, objetificado.
Almar/amar o corpo é abrir perspectiva para experimentá-lo em seu potencial criativo de expressão: um corpo que dança, sente, ressente; um corpo que lembra, relembra e também inventa. Um corpo não como algo que temos, mas como algo que somos.
Se não podemos corrigir a alienação dolorosa que o patriarcado nos deixou ao estigmatizar e colonizar nossos corpos femininos, se há dias que o espelho torna-se um inimigo e mantrar “amo o que vejo” parece falso e /ou insuficiente, tentamos nos lembrar que para além da “máscara mortuária” que criaram sobre nós, não somos só o que os olhos vêm.
E temos muito mais do que olhos, por isso um corpo é muito mais do que o que está refletido, mas aquilo que também reflete. Nutrir e experimentar o corpo através de outros sentidos é refletir sobre outros sentidos de ser um corpo através de sons, ritmos, emoções, sabores e movimentos.
Almar o corpo nos convida a morar no corpo, e não apenas enxergá-lo de fora.
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